MARCELE LINHARES VIANA

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Centro de Letras e Artes (CLA) - Escola de Belas Artes (EBA)
Programa de Pós-graduação em Artes Visuais (PPGAV) - Linha de Pesquisa História da Arte - História e Crítica da Arte

quinta-feira, 5 de maio de 2011

...podemos dizer que para sermos felizes
em nossa casa, entre nossos móveis,
é preciso um pouco de arte...

Revista A Casa
janeiro de 1944, p.12

RESUMO

O presente estudo tem como objeto de pesquisa o Mobiliário Neocolonial, produzido no Rio de Janeiro durante a primeira metade do século XX, principalmente entre as décadas de 1920 e 1940. O móvel Neocolonial representou através do resgate de heranças culturais do passado colonial nacional, o início de uma nova etapa na produção do mobiliário brasileiro.

Iniciamos este trabalho apresentando um panorama do Movimento Neocolonial e como ele foi divulgado no Brasil, particularmente no Rio de Janeiro, pelas revistas de arquitetura e decoração.

Em seguida, fazemos uma análise formal e estilística dos móveis que compõem o estilo Neocolonial através de imagens dessas revistas e de móveis de época captadas de antiquários e arquivos públicos e particulares.

No último segmento, analisamos as questões ideológicas fundamentais do Movimento – a tradição e a modernidade – relacionadas ao contexto sócio-cultural da época no país. Com base no referencial teórico dos autores Eric Hobsbawn e Antoine Compagnon, avaliamos esses dois conceitos que guiaram o pensamento do Movimento. Analisamos, por fim, o papel exercido pelo mobiliário Neocolonial na capital carioca e sua participação na construção da tradição e da modernidade nacionais.

ABSTRACT

The present study has as its research subject the Neocolonial furniture, which was produced in Rio de Janeiro during the first half of the twenty century, mainly between the twenties and forties. The Neocolonial furniture represented, through the rescue of cultural heritages of the colonial past, a new stage of Brazilian furniture production.

The first part of this work presents a panorama of the Neocolonial Movement and how it was released in Brazil, specially at Rio de Janeiro, by architecture and decoration magazines.

Next, a formal and stylistic furniture analysis is made by way of pictures of those magazines and photos of antique furniture collected at antique shops and public and private archives.

In the last part, two fundamental ideological questions of the Movement are analyzed – the tradition and the modernity – related to the social and cultural context of Brazil at the time. Based on theories by Eric Hobsbawn and Antoine Compagnon, these two conceptions – which guided the Movement thought - were evaluated. Finally, the role played by the Neocolonial furniture at Rio de Janeiro and the participation in the construction of the national tradition and modernity is analyzed.

INTRODUÇÃO

Por um longo tempo o mobiliário e as artes decorativas foram classificados como artes menores e fizeram parte da maioria das pesquisas em História da Arte como manifestações artísticas secundárias. O interesse pelo assunto como objeto de pesquisa começou a despontar no Brasil com o preocupação pelo resgate do passado histórico e artístico nacional a partir da primeira metade do século XX. Esse período coincidiu com o desenvolvimento do Movimento Neocolonial e da produção de móveis inspirados nos estilos antigos nacionais.

Produzido durante a primeira metade do século XX, principalmente entre as décadas de 1920 e 1940, o mobiliário Neocolonial fez parte de uma importante etapa no desenvolvimento dos móveis nacionais. Ao propor um enfoque direcionado para o conhecimento da história do mobiliário brasileiro e para sua releitura através do revivalismo dos estilos coloniais, o Neocolonial estabeleceu uma nova reflexão sobre a arte mobiliária no país. Identificado com freqüência como apenas uma manifestação tardia do Ecletismo, o Neocolonial marcou uma fase de renovação do conceito do móvel no Brasil, estabelecendo uma transição entre o mobiliário Eclético nacional, profundamente influenciado pelos estilos estrangeiros, e a introdução no mercado do móvel Moderno brasileiro. A pesquisa sobre a arte mobiliária moderna apresenta-se muito mais avançada que a do Neocolonial, embora os estilos tenham sido contemporâneos. Talvez pelo fato do Movimento ter sido por vezes classificado como um pastiche estilístico ou como uma tendência tardia do Ecletismo nacional, tenha ficado à margem, em grande parte, das pesquisas na área de História da Arte.

O móvel Neocolonial, portanto, praticamente não possui material levantado sobre sua produção, diferentemente das publicações acerca da arquitetura no estilo que apresenta alguns trabalhos sobre o tema. As considerações relativas ao mobiliário Neocolonial, quando mencionadas, aparecem em geral de forma resumida ou superficial nos trabalhos sobre arquitetura e mobiliário dessa época no país. A bibliografia disponível atualmente sobre o móvel nacional compreende o histórico do mobiliário colonial e imperial que se limita a fins do século XIX[1], enquanto a documentação sobre os móveis do século XX[2] dá enfoque à produção mobiliária nacional de linhas modernas, que ocorreu com maior vulto a partir da década de 1950 no país, deixando um espaço vago no que se refere à primeira metade do século XX, principalmente no Rio de Janeiro.

Além do escasso material bibliográfico sobre o assunto, nos deparamos com um outro fator ligado à pesquisa de campo sobre o móvel Neocolonial: a dificuldade de obter contato e informações com os antiquários – profissionais que na medida em que lidam com os móveis Neocoloniais poderiam contribuir para ampliarmos nosso ponto de vista. Esses profissionais não colaboraram, recusando-se a conceder entrevistas e/ou a responder questionário elaborado especialmente para levantamento de dados sobre os móveis Neocoloniais.[3] Por isso, embora algumas das lojas de móveis antigos tenham permitido o nosso acesso aos mobiliário para fotografar, não foi possível confrontar as informações provindas dos profissionais da área de antiguidades com o material textual pesquisado sobre o Neocolonial. A partir desse impasse, concentramos a pesquisa na análise da documentação apresentada pelas revistas de arquitetura e decoração da época e na observação direta do mobiliário no estilo. [4]

Diante desse panorama, estruturamos nosso trabalho cujo interesse pelo mobiliário Neocolonial se consolidou principalmente no sentido de relacionar as questões ideológicas do Movimento e específicas do mobiliário ao contexto da época, já que parte das pesquisas acerca do móvel nacional tende a fazer apenas uma análise formal ou catalográfica dos mesmos. A produção de textos críticos sobre o assunto, embora crescente, ainda é restrita e, particularmente sobre o mobiliário Neocolonial é escassa.

A partir dessa reflexão, o presente estudo sobre o móvel Neocolonial se propõe avaliar as questões estilísticas do mobiliário, considerando os ideais do Movimento, relacionando-as com a realidade cultural carioca da primeira metade do século XX, no sentido de preencher essa lacuna existente na pesquisa mobiliária nacional. Intimamente ligado às questões de modernidade e tradição nacional, conceitos correntes na época, o estilo possuía como elemento fundamental a busca pela identidade mobiliária brasileira através do resgate da produção antiga nacional. A configuração social e política do país republicano favoreceu a construção de uma tradição moderna nacionalista que ganhou forma através dos móveis no estilo.

Para analisar essas principais questões que guiaram o pensamento dos idealizadores do Neocolonial no Brasil, elaboramos nossa base teórica a partir das reflexões de Eric Hobsbawn. Seguindo seu conceito de tradição inventada, para o historiador ponto fundamental na constituição das sociedades modernas, utilizamos suas publicações como referencial teórico.[5]

Complementando o quadro teórico avaliamos a questão da modernidade que esteve ligada também aos ideais do Movimento a partir do pensamento de Antoine Compagnon, em “Os cinco paradoxos da Modernidade”, onde o autor trabalha com as principais diretrizes da arte. Compagnon analisa os paradigmas da modernidade através da arte a partir de pares de conceitos[6] que constituíram o panorama artístico ao longo do século XX.

Nesse sentido, buscamos analisar os valores de tradição e modernidade, elementos de grande importância na relação entre a sociedade carioca da primeira metade do século XX e os ideais do Movimento Neocolonial através do mobiliário no estilo. Organizamos, portanto, o trabalho partindo do mobiliário e analisando-o inserido no contexto da modernidade nacional e do Neocolonial. O estudo do móvel no estilo possibilitou revelar como, no panorama carioca da época, a busca pela tradição na modernidade nacional – título desse trabalho – se estabeleceu através do Neocolonial.

Embora ao longo desse estudo apresentemos algumas características do Movimento que foram também pertinentes à arquitetura no estilo, buscamos priorizar a pesquisa em função do nosso objeto através de suas manifestações específicas. Procuramos analisar o mobiliário Neocolonial a partir de informações obtidas em nossa pesquisa de campo e não com referência nos trabalhos existentes sobre a arquitetura Neocolonial.

No capítulo inicial apresentamos através de um panorama geral os antecedentes e as origens do Movimento – que também se desenvolveu em praticamente todos os países do continente Americano[7] – e sua repercussão no Brasil. Travamos contato com as questões ideológicas defendidas pelos tradicionalistas brasileiros através dos artigos e reportagens sobre o Neocolonial em revistas especializadas em arquitetura e decoração – principalmente A Casa e Architectura no Brasil – publicadas entre as décadas de 1920 e 1940 na então capital carioca. Dessas fontes, levantamos além do material textual sobre o estilo, diversas imagens – fotos, gravuras, aquarelas – e anúncios que utilizamos ao longo do trabalho para ilustrar e analisar o móvel Neocolonial, bem como registrar como ele foi divulgado junto ao público leitor a partir desses periódicos. Essa relação do mobiliário com o contexto cultural da época e da sociedade com o estilo foi possível observar através das revistas trabalhadas, que funcionaram como uma importante fonte de documentação da relação que se estabeleceu entre o móvel Neocolonial e o cotidiano carioca do período.

A arte do mobiliário nunca foi independente, separada da vida cotidiana. Esteve sempre identificada com as idéias, com a moral e com a maneira de viver de um dado período. (...) A história dos estilos através dos séculos é concludente a este respeito. As linhas de cada estilo revelam características fatais da época em que ele nasceu e floresceu.[8]

No segundo capítulo, tratamos diretamente da questão mobiliária nacional a partir de um breve histórico da produção mobiliária desde o século XVI até o século XX. Apresentamos os principais antecedentes estilísticos do móvel Neocolonial, produzidos nos períodos colonial e imperial, e que constituíram as bases referenciais para o estilo no século XX. No levantamento sobre os estilos de móveis fabricados na primeira metade do século XX, é possível visualizar a diversidade do mercado mobiliário da época e as diferentes tendências estilísticas correntes no país.

Nesse segmento, identificamos e analisamos ainda o conjunto de estilos de móveis que compunham o Neocolonial. Dividido em sub-estilos neos, o mobiliário Neocolonial apresentava suas variações inspiradas nos estilos do passado nacional, que retratamos através das imagens de revistas e de fotografias captadas de antiquários cariocas e acervos públicos e privados. Além de apontar e analisar as particularidades de cada sub-estilo Neocolonial, verificamos as principais características presentes na sua produção mobiliária em geral, como materiais, técnicas construtivas e decorativas, tipologias, etc. Levantamos também, as questões conferidas ao mobiliário na primeira metade do século XX que nos revelaram os valores atribuídos aos móveis na época e como tais conceitos estiveram presentes na vida da sociedade carioca inserida na modernidade que se instaurava no país.

No terceiro capítulo, tratamos da questão dicotômica apresentada pelos conceitos de tradição e modernidade a partir do qual o estilo se estruturou. Tais conceitos, a princípio excludentes, constituíram um par ideológico fundamental para o pensamento do Movimento e para a relação que se estabeleceu entre o Neocolonial e a sociedade da época, através do móvel no estilo. Tradição e modernidade se complementaram envolvendo as questões nacionalistas do contexto da época com a produção mobiliária Neocolonial.

Identificamos dois momentos fundamentais da produção do móvel Neocolonial que estiveram relacionados diretamente com as transformações socioculturais ocorridas no país na época. Destacamos o quanto o contexto nacional, envolvido em questões como o Centenário de Independência do Brasil, a Revolução de 1930 e a instauração do Estado Novo dialogaram com os valores nacionalistas do Movimento Neocolonial. Relacionamos, perante esse foco, o mobiliário Neocolonial ao contexto de modernidade da época, considerando sua participação e contribuição para a construção da tradição nacional brasileira, diante do qual concluímos nossos questionamentos.

A partir do pensamento e da manifestação mobiliária Neocolonial, este estudo mostra como o estilo participou e interagiu com o cenário de transformações do país, principalmente da capital carioca, na primeira metade do século XX. Considerado como mais um elemento na construção histórica nacional, o móvel Neocolonial congregava os conceitos artísticos em voga na cidade do Rio de Janeiro da época aos valores mobiliários atribuídos à sua produção. Bem como as expectativas que os cidadãos nutriam para o país, a proposta Neocolonial buscava a modernidade através do resgate da tradição brasileira, a emancipação artística através da criação de um novo estilo e o futuro através do reconhecimento da história nacional.



[1] Como os livros O Móvel no Brasil: origens, evolução e características (1985) e O Móvel do Século XIX no Brasil (1989), de Tilde Canti.

[2] Como a publicação Móvel Moderno no Brasil (1995) de Maria Cecília Loschiavo dos Santos.

[3] Segue em Anexo 2 – Textos (pág 122) o questionário elaborado com o intuito de levantar informações a partir dos antiquários sobre os móveis Neocoloniais e a listagem dos Antiquários cariocas visitados em nossa pesquisa de campo.

[4] Além dos antiquários, tivemos acesso ao móvel Neocolonial através de coleções públicas e particulares de onde pudemos levantar um total de cerca de 115 móveis no estilo registrados em mais de 150 fotografias.

[5] “A Invenção das Tradições” (Eric Hobsbawn e Terence Ranger, 1984) e “Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991” (Eric Hobsbawn, 1995).

[6] COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Ed UFMG, 1996, p15.

[7] Países como Colômbia, México, Uruguai, Paraguai, Peru, Venezuela, Chile, Equador, Argentina, Bolívia, Guatemala, Panamá, Cuba, Porto Rico, República Dominicana, Costa Rica, Honduras e Estados Unidos desenvolveram o estilo Neocolonial de acordo com a publicação do Seminário “El Colonial en America Latina”, coordenado por Aracy Amaral (1994).

[8] Artigo “Móveis, decoração, estilo”, autor anônimo, Revista A Casa, janeiro de 1944, p 15.