MARCELE LINHARES VIANA

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Centro de Letras e Artes (CLA) - Escola de Belas Artes (EBA)
Programa de Pós-graduação em Artes Visuais (PPGAV) - Linha de Pesquisa História da Arte - História e Crítica da Arte

quinta-feira, 5 de maio de 2011

INTRODUÇÃO

Por um longo tempo o mobiliário e as artes decorativas foram classificados como artes menores e fizeram parte da maioria das pesquisas em História da Arte como manifestações artísticas secundárias. O interesse pelo assunto como objeto de pesquisa começou a despontar no Brasil com o preocupação pelo resgate do passado histórico e artístico nacional a partir da primeira metade do século XX. Esse período coincidiu com o desenvolvimento do Movimento Neocolonial e da produção de móveis inspirados nos estilos antigos nacionais.

Produzido durante a primeira metade do século XX, principalmente entre as décadas de 1920 e 1940, o mobiliário Neocolonial fez parte de uma importante etapa no desenvolvimento dos móveis nacionais. Ao propor um enfoque direcionado para o conhecimento da história do mobiliário brasileiro e para sua releitura através do revivalismo dos estilos coloniais, o Neocolonial estabeleceu uma nova reflexão sobre a arte mobiliária no país. Identificado com freqüência como apenas uma manifestação tardia do Ecletismo, o Neocolonial marcou uma fase de renovação do conceito do móvel no Brasil, estabelecendo uma transição entre o mobiliário Eclético nacional, profundamente influenciado pelos estilos estrangeiros, e a introdução no mercado do móvel Moderno brasileiro. A pesquisa sobre a arte mobiliária moderna apresenta-se muito mais avançada que a do Neocolonial, embora os estilos tenham sido contemporâneos. Talvez pelo fato do Movimento ter sido por vezes classificado como um pastiche estilístico ou como uma tendência tardia do Ecletismo nacional, tenha ficado à margem, em grande parte, das pesquisas na área de História da Arte.

O móvel Neocolonial, portanto, praticamente não possui material levantado sobre sua produção, diferentemente das publicações acerca da arquitetura no estilo que apresenta alguns trabalhos sobre o tema. As considerações relativas ao mobiliário Neocolonial, quando mencionadas, aparecem em geral de forma resumida ou superficial nos trabalhos sobre arquitetura e mobiliário dessa época no país. A bibliografia disponível atualmente sobre o móvel nacional compreende o histórico do mobiliário colonial e imperial que se limita a fins do século XIX[1], enquanto a documentação sobre os móveis do século XX[2] dá enfoque à produção mobiliária nacional de linhas modernas, que ocorreu com maior vulto a partir da década de 1950 no país, deixando um espaço vago no que se refere à primeira metade do século XX, principalmente no Rio de Janeiro.

Além do escasso material bibliográfico sobre o assunto, nos deparamos com um outro fator ligado à pesquisa de campo sobre o móvel Neocolonial: a dificuldade de obter contato e informações com os antiquários – profissionais que na medida em que lidam com os móveis Neocoloniais poderiam contribuir para ampliarmos nosso ponto de vista. Esses profissionais não colaboraram, recusando-se a conceder entrevistas e/ou a responder questionário elaborado especialmente para levantamento de dados sobre os móveis Neocoloniais.[3] Por isso, embora algumas das lojas de móveis antigos tenham permitido o nosso acesso aos mobiliário para fotografar, não foi possível confrontar as informações provindas dos profissionais da área de antiguidades com o material textual pesquisado sobre o Neocolonial. A partir desse impasse, concentramos a pesquisa na análise da documentação apresentada pelas revistas de arquitetura e decoração da época e na observação direta do mobiliário no estilo. [4]

Diante desse panorama, estruturamos nosso trabalho cujo interesse pelo mobiliário Neocolonial se consolidou principalmente no sentido de relacionar as questões ideológicas do Movimento e específicas do mobiliário ao contexto da época, já que parte das pesquisas acerca do móvel nacional tende a fazer apenas uma análise formal ou catalográfica dos mesmos. A produção de textos críticos sobre o assunto, embora crescente, ainda é restrita e, particularmente sobre o mobiliário Neocolonial é escassa.

A partir dessa reflexão, o presente estudo sobre o móvel Neocolonial se propõe avaliar as questões estilísticas do mobiliário, considerando os ideais do Movimento, relacionando-as com a realidade cultural carioca da primeira metade do século XX, no sentido de preencher essa lacuna existente na pesquisa mobiliária nacional. Intimamente ligado às questões de modernidade e tradição nacional, conceitos correntes na época, o estilo possuía como elemento fundamental a busca pela identidade mobiliária brasileira através do resgate da produção antiga nacional. A configuração social e política do país republicano favoreceu a construção de uma tradição moderna nacionalista que ganhou forma através dos móveis no estilo.

Para analisar essas principais questões que guiaram o pensamento dos idealizadores do Neocolonial no Brasil, elaboramos nossa base teórica a partir das reflexões de Eric Hobsbawn. Seguindo seu conceito de tradição inventada, para o historiador ponto fundamental na constituição das sociedades modernas, utilizamos suas publicações como referencial teórico.[5]

Complementando o quadro teórico avaliamos a questão da modernidade que esteve ligada também aos ideais do Movimento a partir do pensamento de Antoine Compagnon, em “Os cinco paradoxos da Modernidade”, onde o autor trabalha com as principais diretrizes da arte. Compagnon analisa os paradigmas da modernidade através da arte a partir de pares de conceitos[6] que constituíram o panorama artístico ao longo do século XX.

Nesse sentido, buscamos analisar os valores de tradição e modernidade, elementos de grande importância na relação entre a sociedade carioca da primeira metade do século XX e os ideais do Movimento Neocolonial através do mobiliário no estilo. Organizamos, portanto, o trabalho partindo do mobiliário e analisando-o inserido no contexto da modernidade nacional e do Neocolonial. O estudo do móvel no estilo possibilitou revelar como, no panorama carioca da época, a busca pela tradição na modernidade nacional – título desse trabalho – se estabeleceu através do Neocolonial.

Embora ao longo desse estudo apresentemos algumas características do Movimento que foram também pertinentes à arquitetura no estilo, buscamos priorizar a pesquisa em função do nosso objeto através de suas manifestações específicas. Procuramos analisar o mobiliário Neocolonial a partir de informações obtidas em nossa pesquisa de campo e não com referência nos trabalhos existentes sobre a arquitetura Neocolonial.

No capítulo inicial apresentamos através de um panorama geral os antecedentes e as origens do Movimento – que também se desenvolveu em praticamente todos os países do continente Americano[7] – e sua repercussão no Brasil. Travamos contato com as questões ideológicas defendidas pelos tradicionalistas brasileiros através dos artigos e reportagens sobre o Neocolonial em revistas especializadas em arquitetura e decoração – principalmente A Casa e Architectura no Brasil – publicadas entre as décadas de 1920 e 1940 na então capital carioca. Dessas fontes, levantamos além do material textual sobre o estilo, diversas imagens – fotos, gravuras, aquarelas – e anúncios que utilizamos ao longo do trabalho para ilustrar e analisar o móvel Neocolonial, bem como registrar como ele foi divulgado junto ao público leitor a partir desses periódicos. Essa relação do mobiliário com o contexto cultural da época e da sociedade com o estilo foi possível observar através das revistas trabalhadas, que funcionaram como uma importante fonte de documentação da relação que se estabeleceu entre o móvel Neocolonial e o cotidiano carioca do período.

A arte do mobiliário nunca foi independente, separada da vida cotidiana. Esteve sempre identificada com as idéias, com a moral e com a maneira de viver de um dado período. (...) A história dos estilos através dos séculos é concludente a este respeito. As linhas de cada estilo revelam características fatais da época em que ele nasceu e floresceu.[8]

No segundo capítulo, tratamos diretamente da questão mobiliária nacional a partir de um breve histórico da produção mobiliária desde o século XVI até o século XX. Apresentamos os principais antecedentes estilísticos do móvel Neocolonial, produzidos nos períodos colonial e imperial, e que constituíram as bases referenciais para o estilo no século XX. No levantamento sobre os estilos de móveis fabricados na primeira metade do século XX, é possível visualizar a diversidade do mercado mobiliário da época e as diferentes tendências estilísticas correntes no país.

Nesse segmento, identificamos e analisamos ainda o conjunto de estilos de móveis que compunham o Neocolonial. Dividido em sub-estilos neos, o mobiliário Neocolonial apresentava suas variações inspiradas nos estilos do passado nacional, que retratamos através das imagens de revistas e de fotografias captadas de antiquários cariocas e acervos públicos e privados. Além de apontar e analisar as particularidades de cada sub-estilo Neocolonial, verificamos as principais características presentes na sua produção mobiliária em geral, como materiais, técnicas construtivas e decorativas, tipologias, etc. Levantamos também, as questões conferidas ao mobiliário na primeira metade do século XX que nos revelaram os valores atribuídos aos móveis na época e como tais conceitos estiveram presentes na vida da sociedade carioca inserida na modernidade que se instaurava no país.

No terceiro capítulo, tratamos da questão dicotômica apresentada pelos conceitos de tradição e modernidade a partir do qual o estilo se estruturou. Tais conceitos, a princípio excludentes, constituíram um par ideológico fundamental para o pensamento do Movimento e para a relação que se estabeleceu entre o Neocolonial e a sociedade da época, através do móvel no estilo. Tradição e modernidade se complementaram envolvendo as questões nacionalistas do contexto da época com a produção mobiliária Neocolonial.

Identificamos dois momentos fundamentais da produção do móvel Neocolonial que estiveram relacionados diretamente com as transformações socioculturais ocorridas no país na época. Destacamos o quanto o contexto nacional, envolvido em questões como o Centenário de Independência do Brasil, a Revolução de 1930 e a instauração do Estado Novo dialogaram com os valores nacionalistas do Movimento Neocolonial. Relacionamos, perante esse foco, o mobiliário Neocolonial ao contexto de modernidade da época, considerando sua participação e contribuição para a construção da tradição nacional brasileira, diante do qual concluímos nossos questionamentos.

A partir do pensamento e da manifestação mobiliária Neocolonial, este estudo mostra como o estilo participou e interagiu com o cenário de transformações do país, principalmente da capital carioca, na primeira metade do século XX. Considerado como mais um elemento na construção histórica nacional, o móvel Neocolonial congregava os conceitos artísticos em voga na cidade do Rio de Janeiro da época aos valores mobiliários atribuídos à sua produção. Bem como as expectativas que os cidadãos nutriam para o país, a proposta Neocolonial buscava a modernidade através do resgate da tradição brasileira, a emancipação artística através da criação de um novo estilo e o futuro através do reconhecimento da história nacional.



[1] Como os livros O Móvel no Brasil: origens, evolução e características (1985) e O Móvel do Século XIX no Brasil (1989), de Tilde Canti.

[2] Como a publicação Móvel Moderno no Brasil (1995) de Maria Cecília Loschiavo dos Santos.

[3] Segue em Anexo 2 – Textos (pág 122) o questionário elaborado com o intuito de levantar informações a partir dos antiquários sobre os móveis Neocoloniais e a listagem dos Antiquários cariocas visitados em nossa pesquisa de campo.

[4] Além dos antiquários, tivemos acesso ao móvel Neocolonial através de coleções públicas e particulares de onde pudemos levantar um total de cerca de 115 móveis no estilo registrados em mais de 150 fotografias.

[5] “A Invenção das Tradições” (Eric Hobsbawn e Terence Ranger, 1984) e “Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991” (Eric Hobsbawn, 1995).

[6] COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Ed UFMG, 1996, p15.

[7] Países como Colômbia, México, Uruguai, Paraguai, Peru, Venezuela, Chile, Equador, Argentina, Bolívia, Guatemala, Panamá, Cuba, Porto Rico, República Dominicana, Costa Rica, Honduras e Estados Unidos desenvolveram o estilo Neocolonial de acordo com a publicação do Seminário “El Colonial en America Latina”, coordenado por Aracy Amaral (1994).

[8] Artigo “Móveis, decoração, estilo”, autor anônimo, Revista A Casa, janeiro de 1944, p 15.

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